quinta-feira, maio 19, 2016

Como a serpente se tornou Satanás

Adão, Eva e a serpente no Jardim do Éden

Shawna Dolansky   •  04/08/2016
Texto original - Biblical Archaeology Society

Apresentada como "o mais inteligente de todos os animais do campo, que Deus havia criado," a serpente no Jardim do Éden é retratada apenas assim: “a serpente”. Não houve uma aparição de Satanás em Gênesis 2-3 pela simples razão de que, quando esta história foi escrita, o conceito do diabo ainda não havia sido inventado. Tentar explicar a serpente no Jardim do Éden como sendo Satanás para os antigos autores do texto, soaria como algo muito estranho. Seria semelhante dizer que a visão de Ezequiel se referia a um OVNI (pesquise agora no Google "visão de Ezequiel" e veja que muitas pessoas fazem essa conexão!). De fato, a palavra satan aparece em outras partes da Bíblia Hebraica/Antigo Testamento, mas nunca como um nome próprio; uma vez que não há um diabo na visão de mundo do antigo Israel, não se pode afirmar que havia um nome próprio para tal criatura.

No quadro estão Deus, querubins, anjos, Adão, Eva e a serpente no Jardim do Éden. Pintura de Domenichino: A repreensão de Adão e Eva (1626). Foto: Patron’s Permanent Fund, National Gallery of Art.

O substantivo satan, no hebraico, significa "adversário" ou "acusador", ocorre nove vezes na Bíblia Hebraica: cinco vezes para descrever um militar humano, adversário político ou legal, e quatro vezes com referência a um ser divino. Em Números 221, o profeta Balaão, contratado para amaldiçoar os israelitas, é parado por um mensageiro do Senhor, descrito como "o satan" agindo em nome de Deus. Em Jó, "o satan" é um membro do conselho celestial de Deus – um dos seres divinos, cujo papel na história de Jó é ser um "acusador", um status adquirido também por pessoas no Israel antigo e na Mesopotâmia, para lidar com processos de efeitos judiciais. No caso de Jó, o que está em julgamento é a afirmação de Deus de que Jó é completamente "íntegro e reto" contra a repreensão de “o satan” de que Jó somente se comporta assim porque Deus sempre o recompensou. Deus argumenta que Jó é recompensado porque ele é bom, e não é bom porque ele é recompensado. Então “o satan” desafia Deus a uma aposta em que tudo deve ser tirado do pobre Jó, que vai, a partir daí, deixar de ser íntegro e reto, e Deus aceita. Uma percepção de “o satan” como sendo Satanás tornaria mais fácil compreender essa face de Deus, mas, a história demonstra o contrário; sendo “o satan” um mensageiro do Senhor em Números 22, este satan atua sobre instruções do próprio Deus, não sendo, portanto, uma força (um agente) independente do mal.

Em Zacarias 32, o profeta descreve uma visão do sumo sacerdote Josué, de pé diante de um conselho divino semelhante, também funcionando como um tribunal. Adiante dele estão o mensageiro de Deus e “o satan”, que está ali para acusá-lo. Esta visão é forma que Zacarias utiliza para pronunciar a aprovação da nomeação de Josué para o sumo sacerdócio, em face de membros da comunidade que lhe fazem oposição. O mensageiro repreende “os satan” (adversários, opositores) e ordena que a roupa suja de Josué seja substituída, como ele promete, Josué tem acesso contínuo ao conselho divino. Mais uma vez, “o satan” não é Satanás, que lemos a respeito no Novo Testamento.

A palavra satan aparece apenas uma vez sem o artigo "o" em toda a Bíblia hebraica: em 1 Crônicas 21:1. Será que finalmente teremos Satanás retratado aqui? 1 Crônicas 21 é a história paralela do censo de David que está em 2 Samuel 24 (v.1 – “A ira de Iahweh se acendeu contra Israel e incitou Davi contra eles: ‘Vai”, disse ele, ‘e faze o recenseamento de Israel e de Judá’”.), em que Deus ordena David "Vai, ... e faze o recenseamento de Israel e Judá" e, em seguida, pune rei e o reino por fazê-lo. O cronista muda essa história, como ele faz com outras, para não comprometer o relacionamento entre Deus e Davi; ele escreve que "Satan levantou-se contra Israel e induziu Davi a fazer o recenseamento de Israel" (1 Crônicas 21: 1,6-7; 27:24). Embora seja possível ler "satan" aqui em vez de "o satan" (em hebraico não se usam nem letras maiúsculas, nem artigos indefinidos, por exemplo, "um satan"), nada mais nesta história ou em quaisquer textos há indicação que a idéia de um príncipe mal da escuridão existe na consciência dos israelitas.

Então, se não há nenhum Satanás na Bíblia hebraica, como foi que o diabo entrou no Éden?

A visão de mundo de leitores judeus de Gênesis 2-3 mudou profundamente nos séculos desde que a história foi escrita pela primeira vez. Após o cânon da Bíblia hebraica ter sido fechado3, crenças em anjos, demônios e uma batalha apocalíptica final, surgiu em uma comunidade judaica dividida e turbulenta. À luz deste fim iminente, muitos se voltaram para uma compreensão renovada do início e do Jardim do Éden, que foi re-lido – e re-escrito – para refletir idéias de mudança para um mundo transformado. Duas coisas separadas aconteceram e depois fundiram-se: Satanás tornou-se o nome próprio do diabo, um poder sobrenatural agora visto como opositor de Deus, como o líder dos demônios e as forças do mal; e a serpente no Jardim do Éden veio a ser identificada como sendo ele, Satanás. Enquanto nós começamos a ver a primeira idéia que ocorre em textos de dois séculos antes do Novo Testamento, a segunda não vai acontecer nem tão cedo; a serpente do Éden não é identificada com Satanás na Bíblia hebraica ou do Novo Testamento.

O conceito do diabo começa a aparecer em textos judaicos do segundo e primeiro séculos BCE (Before de Commom Era4). Em 1 Enoque, o "anjo", que "seduziu Eva" e "mostrou as armas de morte aos filhos dos homens" foi chamado Gadreel (não Satanás). Na mesma época, a Sabedoria de Salomão ensinou que "pela inveja do diabo entrou a morte no mundo, e aqueles que estão de seu lado a sofrerão." Embora isso possa muito bem ser a primeira referência a serpente do Éden como o diabo, em nenhum texto, nem em qualquer documento que temos até depois do Novo Testamento, satan pode ser claramente entendido sendo como a serpente no Éden. No Qumran, no entanto, Satanás é o líder das forças das trevas; seu poder é dito para ameaçar a humanidade, e acreditava-se que a salvação traria a ausência de Satanás e do mal. 

No primeiro século da EC (Era Cristã – um ano após o nascimento de Jesus), Satanás é adotado por um movimento cristão nascente, sendo ele governante de um reino de escuridão, um oponente e enganador de Jesus (Marcos 1:13), príncipe dos demônios e força de oposição a Deus (Lucas 11:15 -19; Mateus 12: 24-27; Marcos 3: 22-23: 26); o ministério de Jesus coloca um fim temporário para o reino de Satanás (Lucas 10:18) e a conversão dos gentios leva-os de Satanás para Deus (Atos 26:18). Na mais famosa declaração, Satanás põe em perigo as comunidades cristãs, mas vai cair no ato final de salvação de Cristo, descrito em detalhes no livro do Apocalipse.

Mas, curiosamente, embora o autor do Apocalipse descreva Satanás como "a antiga serpente" (Apocalipse 12:9; 20:2), não existe uma ligação clara na Bíblia entre Satanás e a cobra falante do Éden. O antigo mito da batalha, no Oriente Próximo, que envolveu Marduk e Tiamat no texto de Enuma Elish e Baal e Yam/Mot nos textos da antiga Canaã, normalmente representam o mal como uma serpente. A caracterização do Leviatã em Isaías 27 reflete tais mitos muito bem:

“Naquele dia, punirá Iahweh,
Com a sua espada dura, a grande e forte,
Leviatã, serpente escorregadia,
Leviatã, serpente tortuosa,
Matará o monstro que habita o mar”.

Assim, a referência de Apocalipse 12:9 a Satanás como "a antiga serpente" provavelmente reflete monstros míticos como Leviatã, em vez da inteligente, equipada com pernas, e falante criatura no Éden.

No Novo Testamento, Satanás e seus demônios têm o poder de entrar nas pessoas e  possuí-las; isto é o que se diz ter acontecido a Judas (Lucas 22: 3; João 13:27; cf. Marcos 5: 12-13; Lucas 8: 30-32). Mas quando Paulo reconta a história de Adão e Eva, ele coloca a culpa nos seres humanos (Romanos 5:18; cf. 1 Coríntios 15: 21-22), e não em anjos caídos, ou na serpente como Satã. Ainda assim, tal fusão implorou para ser feita, e ela vai parecer natural para os autores cristãos posteriores Justino Mártir, Tertuliano, Cipriano, Irineu e Agostinho, por exemplo, que assumiriam a associação de Satanás com a serpente falante do Éden. O mais famoso relato, no século 17, elaborado por John Milton, apresenta o papel de Satanás no Jardim de forma poética, com grandes detalhes no Paradise Lost. Mas esta ligação não é observada em qualquer lugar na Bíblia.

Notas
  1. Números 22.22 - “A sua partida excitou a ira de Iahweh e o anjo (lë satan) de Iahweh se colocou na estrada, para barrar-lhe a passagem”.
  2. Zacarias 3.1 – “Ele me fez ver Josué, sumo sacerdote, que estava de pé diante do Anjo de Iahweh, e Satã (vë ha satan), que estava de pé à sua direita para acusá-lo”.
  3. O livro de Daniel foi o último livro a ser incluído na Bíblia Hebraica/Antigo Testamento em cerca de 162 aC.
  4. BCD - utilizado para mostrar que um ano ou século vem antes do ano 1 do calendário utilizado em grande parte do mundo, p. ex.na Europa, nas américas do norte do sul.